Armando Luís de Carvalho Homem
Como é da «sabedoria das nações», a UP é uma criação do Governo Provisório da República, por decorrência do Decreto com força de lei de 22 de Março de 1911. A tutela do Sistema Educativo passava então pelo ministério do Interior – como até 1910 passara pelo ministério da Reino: de facto, o ministério que dos anos 10 aos anos 30 de Novecentos se chamará «da Instrução Pública», com ocasionais antecedentes na segunda metade de Oitocentos, apenas surgirá definitivamente em 1913. Em 1911 a pasta do Interior era desempenhada por um ícone do novo Regime, António José de Almeida. Por ele passou, com efeito, toda a obra inicial da República em matéria de Ensino Superior: a reforma da UC e a federação das Escolas Superiores de Lisboa e do Porto em duas novas Universidades. Por alguma razão, durante muito tempo se lhe chamou entre nós «o fundador», e de longa data existe na nossa Reitoria um retrato seu, a par do de outro pai-fundador, o então príncipe regente, futuro D. João VI, fundador da Academia Real da Marinha e do Comércio, em 1803.
O prelúdio das reformas fundacionais de António José de Almeida encontrava-se logo em Novembro de 1910, com a transformação das duas Escolas Médico-Cirúrgicas em Faculdades de Medicina, ministrando todos os diplomas e graus da congénere coimbrã; congénere coimbrã, aliás, cuja extinção terá estado iminente, travada «in extremis» pelo prestígio científico e profissional de dois dos seus lentes, o psiquiatra Elísio de Moura e o obstetra Daniel de Matos.
Mas voltando ao Porto: tem sido dito que a criação da Universidade surgiu em 1911 como algo de inesperado, porventura decepcionante, na Cidade e na Região. Nesse mesmo sentido se exprimia, há cerca de meio século, alguém que era ao tempo o último sobrevivente do Corpo Docente das Escolas Superiores do Porto, o lente jubilado de Física da Faculdade de Ciências Alexandre Alberto de Sousa Pinto (1880-1982), que iniciara carreira em 1902 na Academia Politécnica. Falando em Outubro de 1961 na sessão solene do cinquentenário da UP, Sousa Pinto afirmou, a dado passo, o seguinte:
«Poucos meses decorridos sobre a data da fundação da República, foi o Porto surpreendido, ao ler os jornais da manhã do dia 24 de Março de 1911, com a notícia da publicação dum decreto criando duas novas Universidades, uma em Lisboa, outra no Porto, e anunciando que o Governo publicaria ulteriormente um diploma sobre a Constituição universitária (…). Nenhum movimento de opinião, nenhuma campanha de imprensa, tinham precedido a publicação destes decretos, que foram de iniciativa espontânea do Governo provisório da República».
Para além, portanto, da surpresa, a decepção relativa: no fundo, a UP surgia sem nenhuma Escola verdadeiramente nova, antes, e no essencial, com transformações das preexistentes: a Academia Politécnica dava lugar à Faculdade de Ciências, com uma Escola de Engenharia incorporada; a Escola Médico-Cirúrgica dava lugar à Faculdade de Medicina, com uma Escola de Farmácia anexa. Ou seja, o esboço, já, do que viriam a ser, por bastas décadas, as quatro Faculdades do Studium Generale portuense, ficando por concretizar a criação de um Instituto Superior de Comércio e com processos acidentados umas vezes, demorados noutras, no que toca a inclusão de domínios científicos diversos, que não os que, no fundo, vinham do século XIX. É evidente que o quadro disciplinar da nova Faculdade de Ciências surgia como significativamente ampliado em relação a tempos anteriores, da Matemática Pura e Aplicada à Física, à Química, à Botânica, à Zoologia, à Antropologia, à Paleontologia, à Geologia; sem esquecer os cursos de Engenharia (em nova Faculdade anos decorridos) e os cursos de preparação para as Escolas Militar e Naval. Mas a diversidade disciplinar dos novos diplomados, obviamente, só se tornaria visível com o passar do tempo, a partir do ano escolar de 1911/12. No fundo, é ainda um pouco essa sensação deceptiva que se percebe noutra passagem da intervenção de Alexandre Sousa Pinto em 1961:
«Na manhã do dia em que ia ter lugar a inauguração da Universidade [16 de Julho de 1911], publicou o “Comércio do Porto” um artigo em que se manifestava o desejo de que uma Faculdade Técnica e uma Faculdade de Filosofia e Letras viessem a ser criadas, sem esquecer também uma Escola Normal superior, e se dizia que a nova Universidade devia ser considerada apenas como o núcleo duma criação mais vasta, que se esperava viria a realizar-se em breve, afirmando que só assim se poderia contribuir para que a cidade do Porto e o norte do País viessem a bendizer a nova organização».
De alguma maneira, um primeiro momento de entusiasmo, digamos assim, da Cidade com o novo quadro de Ensino Superior que passava a ter intra-muros, só se dará na mencionada data de 16 de Julho, quando António José de Almeida se desloca ao Porto a fim de presidir ao acto de instalação da Universidade e de designação pela Assembleia da mesma do primeiro Reitor – mediante a elaboração de uma tríplice lista de nomes, não obrigatoriamente pertencentes ao claustro, a apresentar ao Executivo, para ulterior escolha por este último. O nome com maior número de votos (23 em 48) foi o do matemático Francisco Gomes Teixeira, efectivamente nomeado dias depois para o cargo reitoral, que exerceria até 1917. Correntemente considerado nome cimeiro na Matemática portuguesa desse tempo, Gomes Teixeira detinha um percurso académico todo ele feito na Universidade de Coimbra, onde se doutorara em 1875 e chegara a lente em 1880; em 1885, razões familiares haviam determinado o pedido de transferência para a Academia Politécnica, de que viria a ser, e a partir de 1886, o último Director.
Ora, meses decorridos sobre o momento instituidor de Julho, outro evento minimamente visibilizante ocorreu: foi a 1 de Novembro, com a abertura solene do ano lectivo de 1911/12, sob a presidência do então ministro do Fomento, Sidónio Pais. O novo Studium Generale ia começando a mostrar-se.
Nos cerca de 15 anos da República, as 4 Faculdades como que prenunciadas em 1911 ganharam efectivamente corpo:
- em 1915 separa-se de Ciências a então chamada Faculdade Técnica (de Engenharia a partir de finais de 1926);
- e no mesmo ano a Escola de Farmácia autonomiza-se em relação a Medicina, ganhando estatuto de Faculdade em 1921.
Paralelamente, as complicadas génese, vivência e morte da primeira Faculdade de Letras, entre 1919 e 1931.
A UP nasceu então com a República. Ao longo de cerca de década e meia, a UP deu-se bem com a República ?
Em termos de regime, talvez não se tenha dado propriamente mal. Pergunto-me, aliás, se o positivismo alegadamente reinante nas Escolas portuenses, mormente a Politécnica, na viragem do século não seria mesmo potencialmente convergente com o ideário republicano. Porque creio esclarecedor o facto de a já mencionada pasta da Instrução Pública, surgida, como disse, em 1913, ostentar entre os seus titulares, e até 1928, 5 membros do Corpo Docente portuense, e alguns por mais do que uma vez: concretamente, António Joaquim de Sousa Júnior, João Lopes Martins e Alfredo de Magalhães (por duas vezes), de Medicina; Augusto Nobre (por 3 vezes), de Ciências; e Leonardo Coimbra (também por 3 vezes), de Letras; acrescentemos, na pasta das Finanças, Armando Marques Guedes, ao tempo professor da Faculdade Técnica, último titular da mesma em 1925-1926. Ou seja, em ministérios onde só no Estado Novo se estabeleceu praticamente como norma o exercício por mestres universitários, esta repetida presença do Porto em pastas uma das quais criação definitiva da própria República não poderá, quanto a mim, ser vista como casual ou insignificativa.
E em termos de viver quotidiano, de condições materiais e logísticas, de orçamentos e financiamentos, a UP viveu bem nos anos de 1911 a 1926 ? Na conjuntura que hoje vivemos, não deixa de ser com amarga ironia que me julgo em condições de salientar que os nossos remotos antepassados desse tempo viveram problemas nada fáceis, e, às vezes, tão duros como os que hoje obsessivamente nos (pre)ocupam…
Repare-se: a UP arrancou – e conservou durante décadas – com quatro Unidades Orgânicas no fundo já existentes ou prefiguradas antes de 1911. E, para tal, herdou exactamente os mesmos edifícios, isto é, dois:
· O histórico edifício de Carlos Amarante (1748-1815), sede da Politécnica, em prolongada construção ao longo das últimas décadas de Oitocentos e ainda não concluído em 1911; na primeira década de existência da Universidade esta Casa-Mãe albergou Reitoria, Secretaria-Geral e outros Serviços Centrais, a Faculdade de Ciências e a Escola de Engenharia que integrava, as disciplinas preparatórias de Medicina, os cursos de acesso ao Ensino Militar e até, a partir de 1919, os 2 anos iniciais de funcionamento da Faculdade de Letras.
· o outro edifício era o da bem pouco imponente sede da Medicina, construído na segunda metade do século XIX para sede da Escola Médico-Cirúrgica na antiga cerca dos Terceiros Carmelitas; o Actual edifício-sede do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, substituição e ampliação do anterior, só foi construído na década de 20, com finalização ca. 1930; valia entretanto à Faculdade de Medicina que as disciplinas do ciclo clínico eram leccionadas no vizinho Hospital de St.º António.
Engenharia e Farmácia iriam dispor também de casas próprias, na Rua dos Bragas e na hoje Rua Aníbal Cunha, respectivamente. Só que tais casas passaram por demorados processos de edificação nas décadas de 20 e de 30 e só dadas por concluídas e oficialmente inauguradas em 1937, ainda que Farmácia desde ca. 1925 pudesse utilizar a parte do edifício voltada para a actual igreja paroquial de Cedofeita. Portanto, os espaços da Universidade do Porto foram inicialmente, e durante mais de 20 anos, exactamente os existentes ao tempo da Politécnica e da Médico-Cirúrgica.
E se passarmos a questões como as dos orçamentos e dos financiamentos, é evidente – e com que amargor o lembro no momento em que lhes falo… – que Reitores e Directores de Faculdade passassem não raro por suores frios… Apenas dois exemplos:
· Em 1919, pouco depois de deixar o cargo reitoral, Gomes Teixeira testemunhava em reunião do Senado que em 1911 a Escola de Engenharia – até então integrada na Politécnica e que foi portanto o gérmen da futura Faculdade Técnica – «esteve a cair»; e só a compreensão de António José de Almeida evitara tal desfecho;
· cerca de 10/11 anos mais tarde, razões de suposto prejuízo fizeram pairar sobre a UP a ameaça de extinção das Faculdades de Farmácia (recém-instituída como tal…) e de Letras (que remontava apenas a 1919…); valeu então a persistência e o «savoir faire» do Reitor Augusto Nobre, que por esses anos, e como já se disse, passou por 3 vezes pela pasta da Instrução.
Ou seja, uma coisa terão sido entre 1911 e o termo da República, um quotidiano de normal funcionamento de actividades, sem nenhuma verdadeira «crise académica»; outra terão sido circunstâncias como as referidas, pouco ou nada chegando ao tempo a conhecimento público, mas duramente enfrentadas pelos líderes da comunidade académica.
Em 28 de Maio de 1926 o golpe sob aparente liderança militar de Gomes da Costa começa o pôr termo à situação constitucional remontante a 1910/11. Por ironia do destino, as 3 Universidades portuguesas terão no imediato uma última oportunidade (até á década de 1980…) de escolha electiva dos seus Reitores, por decisão do efémero ministro da Instrução Pública do não menos efémero gabinete Cabeçadas, o lente de Filologia Românica da Universidade de Coimbra (e seu antigo Reitor) Joaquim Mendes dos Remédios. A Reitoria portuense passará a ter, e até 1928, a presença de um republicano conservador e antigo ministro da Instrução de Sidónio Pais, o Doutor José Alfredo Mendes de Magalhães, da Faculdade de Medicina. E o ano de 1926 não chegará ao seu fim sem que, justamente em Dezembro, a Faculdade Técnica passe a ostentar o nome que ainda hoje é o seu: «de Engenharia». Mas o Reitor Alfredo de Magalhães fora entretanto, e de novo, chamado à pasta da Instrução, onde permanecerá até Abril de 1928, sendo portanto um dos seus últimos actos como tal a assinatura do decreto extinguindo (ou pretendendo extinguir) diversos estabelecimentos de Ensino Superior, entre os quais, irreversivelmente, a Faculdade de Letras da UP. Não me demoro hoje neste ponto mais do que o estritamente indispensável. Longe de qualquer visão ‘sacralizante’ da Escola, direi apenas que tudo o que lhe concerne tem sido essencialmente tratado por um prisma político-partidário e até ideológico, com as naturais paixões decorrentes; e que lhe faltam abordagens estritamente académicas e culturais. Também não deixarei de dizer que em finais da década, ainda não consumado o encerramento da Faculdade, um Reitor de campo conservador e monárquico, o já mencionado físico Alexandre de Sousa Pinto, luta evitar tal desfecho, e que um Mestre republicano da Escola, Hernâni Cidade, concretamente, reconhece, sensibilizado, tal sentido de actuação reitoral.
As 4 Faculdades que até à década de 50 corporizaram a UP dispunham, já em 1925, de um Corpo Docente de valor inequívoco, não raro reconhecido além-fronteiras:
· Pensemos, em Ciências, nos matemáticos Gomes Teixeira e Luiz Woodhouse, no químico José Pereira Salgado, nos botânicos Gonçalo Sampaio e Américo Pires de Lima, no antropólogo Mendes Corrêa e no zoólogo Augusto Nobre, a eles se agregando diversos assistentes a iniciar carreira mas com futuro inequívoco: Scipião de Carvalho e Rodrigo Sarmento de Beires em Matemática e Santos Júnior em Antropologia;
· pensemos, em Medicina, nos anatomistas Joaquim Pires de Lima e Hernâni Monteiro, no histologista Abel Salazar, no fisiologista Alberto de Aguiar, no clínico Tiago de Almeida, no cirurgião Álvaro Teixeira Bastos e no psiquiatra Magalhães Lemos, acrescidos dos jovens Amândio Joaquim Tavares (Anatomia Patológica), Alfredo Rocha Pereira (Clínica Médica) e Manuel Cerqueira Gomes (Idem);
· pensemos, em Farmácia, na figura tutelar do Director Aníbal Cunha e nos assistentes Aníbal Albuquerque e Armando Laroze Rocha;
· consideremos, finalmente, a Faculdade Técnica, Escola ao tempo com uma interessante componente de Mestres que eram também militares de carreira, como o general Vitorino Laranjeira (Construções Civis) e o tenente-coronel João Ascensão (Minas). Acrescentemos os nomes de Luís Couto dos Santos (Electrotecnia) e Bento Carqueja (Economia Social), bem como o então assistente António Bonfim Barreiros (Construções Civis).
Para além de valias científicas, a UP configurara-se espacialmente em pleno tecido urbano, a partir de 2 edifícios cobrindo uma área relativamente restrita do mesmo: «dos Clérigos ao Carregal», como tive oportunidade de me exprimir há quase 20 anos. Vizinhando com quarteirões habitados, a interacção entre docentes e discentes e a população proximamente residente fôra, naturalmente rápida, e remontante a Oitocentos: as zonas habitadas do Jardim da Cordoaria, da Rua de Cedofeita ou do Jardim do Carregal, por exemplo, cedo veriam surgir hospedarias, pensões, cafés ou restaurantes populares de frequência estudantil. As expansões em matéria de edifícios nas décadas de 20 e de 30 prosseguiriam o espaço matricial pelos eixos de Cedofeita (até à R. dos Bragas – sede da Faculdade de Engenharia) e das Ruas do Rosário / Boa Hora, até às imediações da igreja românica de Cedofeita – sede da Faculdade de Farmácia. Só a partir dos anos 50, com o Estádio Universitário, o Jardim Botânico e o Hospital de S. João, se esboçariam expansões claramente para além do perímetro mencionado.
Hoje, a UP, no quadro dos 3 pólos configurados a partir de há cerca de 55 anos, tem-se repetidamente reclamado como «a maior do País», de um ponto de vista da quantidade de docentes, investigadores, funcionários, discentes, Unidades Orgânicas, Unidades e Projectos de Investigação and so on… Mas independentemente de tudo isso, a UP, encarada numa já possível longa duração, tem-se revelado, e independentemente das sucessivas situações políticas, uma das mais estáveis instituições de Ensino Superior do nosso País. Será isso compreensível sem um ter em conta dos 15 heróicos anos iniciais, vividos no quadro da Constituição e dos actos legais fundadores de 1911 ?
* Intervenção de abertura no workshop sobre o República e Republicanismo em Portugal e no Brasil (FL/UP, 2010/05/21).
Fonte: Guitarra de Coimbra IV
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